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Entenda a relação entre obesidade e saúde mental

A obesidade aumenta o risco do desenvolvimento de problemas de saúde mental, como depressão, ansiedade e compulsão alimentar.

Publicado em: 24 de fevereiro

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A obesidade aumenta o risco do desenvolvimento de problemas de saúde mental, como depressão, ansiedade e compulsão alimentar. Da mesma forma, os transtornos mentais podem causar ou agravar a obesidade. Para pessoas com obesidade e doenças psiquiátricas associadas, a abordagem diagnóstica e para tratamento deve ser individualizada e levar em consideração todas as variáveis e questões envolvidas. Para falar sobre o assunto, o Saúde Não Se Pesa convidou a psicóloga Andrea Levy, que é especialista em obesidade e transtornos alimentares, autora do livro Cirurgia Bariátrica - Manual de Instruções para Pacientes e Familiares e presidente da ONG Obesidade Brasil

SNSP - Qual a prevalência de distúrbios relacionados à saúde mental em pessoas com obesidade e quais são os mais frequentes?

DRA. ANDREA LEVY - por regra, quanto maior for o grau da obesidade, maior é a chance da pessoa desenvolver um transtorno mental associado. E vice-versa, alguns tipos de transtornos mentais podem agravar a obesidade. Os transtornos mais prevalentes associados à obesidade são:

  • Transtornos de compulsão alimentar;
  • Transtornos de humor, com destaque para o transtorno bipolar de humor, que é mais ou menos 15% prevalente em pessoas com obesidade grave que buscam tratamento
  • Transtornos de ansiedade;

Entre 50% a 60% das pessoas com obesidade têm algum tipo de transtorno depressivo. Alguns estudos mais recentes mostram que os transtornos de déficit de atenção e hiperatividade estão relacionados ao transtorno de compulsão alimentar.

Temos que deixar muito claro que nem todas as pessoas com obesidade têm algum transtorno mental, mas essas duas classes de patologias, frequentemente, caminham juntas.

SNSP - Qual o significado de cada um desses distúrbios e quais os sinais e sintomas mais comuns?

DRA. ANDREA LEVY – a compulsão alimentar, um dos transtornos mais comuns associados à obesidade, não é simplesmente a pessoa ir a uma churrascaria e comer muito, todos nós já tivemos um episódio de exagero. Existem alguns critérios para caracterizar esse transtorno, como:

    ✓  A pessoa comer em um período curto, duas horas mais ou menos, uma grande quantidade de calorias, mais de duas, três mil. Em um episódio grave, pode chegar a dez, quinze mil calorias, que seria o que comemos em uma semana mais ou menos;

    ✓  E, nesses episódios, são comidas não necessariamente saborosas. Às vezes, tem comida gelada, comida crua, comida que ela pegou do congelador. Ela não consegue parar de comer.

    ✓  Em geral, esses episódios acontecem de forma escondida. E, na sequência, a pessoa sente muita culpa, vergonha, tristeza e sensação de falta de controle.

Então, é um transtorno grave, que precisa ser diagnosticado e tratado. Ele pode estar associado com depressão ou com transtorno de ansiedade. E é importante que cada transtorno mental seja muito bem diagnosticado porque, muitas vezes, eles se confundem ou um agrava o outro.

Outros transtornos que podem aparecer junto com a obesidade e são relativamente frequentes são:

Transtorno de ansiedade, que pode chegar a um pico de um transtorno de pânico;

Transtornos de humor, como transtorno de depressão e transtorno bipolar de humor.

 

O transtorno bipolar causa muitos prejuízos emocionais para a pessoa, que tem períodos de hipomania, que é considerada um tipo de transtorno psiquiátrico, mais leve que a mania. Seus sintomas estão relacionados à energia em excesso, impaciência, agitação e impulsividade. A pessoa se sente muito enérgica, gasta muito, sai muito, faz muitas coisas, e acaba, às vezes, fazendo alguns estragos na própria vida, como gastar muito dinheiro e engordar muitos quilos. Enfim, faz coisas que não estariam na rotina dela, tem prejuízos com isso e, depois, entra em um período de depressão.

SNSP - Como a obesidade pode influenciar no surgimento de distúrbios relacionados à saúde mental?

DRA. ANDREA LEVY – no mundo que vivemos, preconceituoso, gordofóbico, que ainda não entende a obesidade como doença, a obesidade pode trazer uma série de limitações para a pessoa do ponto de vista emocional e social. No sentido dela não querer aparecer, ter vergonha do próprio corpo, não conseguir comprar roupa, não passar em catracas, sofrer preconceitos em processos seletivos de empresas. Enfim, todas essas coisas que a pessoa com obesidade passa já tornam a vida muito mais difícil.

Além disso, a obesidade traz uma outra série de limitações metabólicas. Como o corpo tem, literalmente, mais peso para carregar, o coração, o fígado, as articulações precisam trabalhar mais. Então, essa pessoa tem um organismo inflamado. Nessa situação, o corpo reage para combater essas inflamações e, para isso, usa sua própria energia. Isso tem uma relação direta com a saúde mental. Isso porque, se a pessoa está cronicamente inflamada, ela pode chegar a um grau de exaustão, mental inclusive, que a torna muito mais predisposta a desenvolver um transtorno mental, como depressão, transtorno do pânico e fobia social, entre outros.

O corpo com obesidade demanda mais de todos os órgãos e do cérebro, da parte emocional. É lógico que uma pessoa com muita predisposição para a depressão, por exemplo, tem mais facilidade de desenvolver esse transtorno, independentemente da presença de gatilhos. Porém, para uma pessoa que não tem tanta predisposição para desenvolver depressão, a obesidade pode, sim, funcionar como um gatilho, por conta dessas questões todas – inflamatórias, emocionais, sociais.

A obesidade e a saúde mental estão totalmente ligadas e devem ser sempre tratadas juntas. Ou, pelo menos, o diagnóstico tem que ser global para que possamos cuidar da melhor forma da pessoa que procura ajuda para tratar a obesidade e a sua saúde mental.

SNSP - Existe alguma alteração da saúde mental que possa contribuir ou levar à obesidade?

DRA. ANDREA LEVY – sem dúvida. Até agora, falamos sobre como a obesidade pode influenciar na saúde mental. O inverso também é verdadeiro. Embora nem todas as pessoas com transtorno de compulsão alimentar, depressão ou transtornos ansiosos tenham obesidade, esses transtornos podem, sim, desencadear a obesidade, devido ao estilo de vida que a pessoa tem. A pessoa pode ter alterações na forma de se alimentar, no sono, na produtividade, na vontade geral de fazer as coisas, enfim, tudo isso pode fazer com que ela tenha uma predisposição maior para ganhar peso.

SNSP - Os tratamentos medicamentosos de alguns tipos de transtornos mentais podem ser obstáculos para o tratamento da obesidade?

DRA. ANDREA LEVY - eu gostaria de reforçar a importância de se buscar profissionais especialistas no assunto, tanto a pessoa que precisa de um tratamento para sua saúde mental, quanto aquela que precisa tratar a obesidade, quanto aquela que precisa das duas coisas. Os profissionais de saúde vão saber avaliar custo-benefício da medicação que a pessoa precisa usar.

De fato, algumas medicações psiquiátricas podem desencadear maior fome e levar ao ganho de peso. Mas, se o tratamento está sendo bem conduzido por um profissional especialista, dificilmente isso vai acontecer. Se acontecer, esse profissional vai intervir precocemente e ajustar o medicamento. 

A medicação tem como objetivo trazer qualidade de vida para a pessoa, maior controle sobre a patologia que for, seja transtorno mental ou obesidade.

 

SNSP - De que maneira um psicólogo ou profissional focado em saúde mental pode contribuir para o tratamento da obesidade? Em que momento esse profissional deve começar a fazer parte do tratamento?

DRA. ANDREA LEVY – o psicólogo, tanto quanto o psiquiatra, deve fazer parte de uma equipe multidisciplinar que trate da obesidade. Isso porque, na grande maioria das vezes, existem questões emocionais ou até mesmo transtornos mentais associados ao ganho de peso da pessoa, que, se não forem diagnosticados e tratados, dificultam o tratamento da obesidade.

Quando a pessoa recebe esse psicodiagnóstico desde o início do tratamento da obesidade e é tratada globalmente – incluindo psicoterapia e, se necessário, medicação para sua condição de saúde mental –, não só o tratamento da obesidade fica muito mais fácil como a pessoa se sente mais segura e fortalecida. Isso porque ela se sente compreendida pelos profissionais dentro da sua condição de obesidade e de saúde mental.

Isso é muito importante porque, muitas vezes, o profissional diz para a pessoa: “você precisa fechar a boca, volte quando você emagrecer 20 quilos”. Isso não é uma conduta aceitável, mesmo que não seja especialista em obesidade, o profissional de saúde precisa saber identificar, acolher e conduzir esse paciente.

Entendendo que a obesidade é uma doença, ele deveria oferecer ajuda, dizer: “eu estou vendo que você está com sobrepeso, com obesidade, isso agrava uma série de condições da sua saúde metabólica, física, mental, você não gostaria de ajuda? Eu posso te encaminhar para um bom especialista que vai olhar para isso para que você tenha mais saúde e qualidade de vida”.

Dizer para a pessoa “volta aqui daqui a 20 quilos emagrecidos” é uma forma de julgamento, é uma forma de não tratamento e é uma forma, inclusive, de afastar as pessoas dos tratamentos de saúde. Qual a chance da pessoa com obesidade que passou por isso - e muitas passaram - querer voltar a qualquer profissional de saúde? Muitos pacientes não voltam ao nutricionista ou ao médico porque temem que vão tomar bronca por não terem atingido a meta.

Profissionais que dão bronca não são profissionais que sabem conduzir tratamento da obesidade. Exatamente quando você está com dificuldade de chegar ao seu peso, de conduzir o seu tratamento, é a hora que você precisa voltar aos seus profissionais, que vão te ajudar a retomar a rota do tratamento. E isso inclui o psicólogo, o psiquiatra, os profissionais de saúde mental.

SNSP - Os transtornos mentais mais frequentes em quem tem obesidade podem ser evitados e/ou é possível diminuir o risco de acontecerem? Caso positivo, como isso pode ser feito?

DRA. ANDREA LEVY – alguns transtornos mentais não são evitáveis, porque a pessoa é geneticamente predisposta a desenvolvê-los. Mas, uma vez identificado o transtorno, ela precisa buscar ajuda e tratar. E tanto a obesidade quanto as questões de saúde mental, que podem desencadear uma à outra, quanto mais precocemente forem identificadas e tratadas, melhor.

A dificuldade é que essas duas áreas são cercadas de preconceito e pessoas com obesidade ou transtorno mental não são encorajadas a buscar ajuda. Muitas vezes, elas sentem vergonha até de falar a respeito. Por conta disso, essas pessoas, em geral, demoram muitos anos para receber um diagnóstico correto e iniciar o tratamento.

SNSP - Por outro lado, o que pode ser feito para prevenir ou diminuir o risco de desenvolver obesidade em quem tem algum transtorno que afeta a saúde mental?

DRA. ANDREA LEVY – um ponto muito importante é a educação em obesidade. Educação, por exemplo, dos profissionais de saúde, para que eles ajudem a pessoa a identificar precocemente a obesidade. Educação sobre a importância de estimular a atividade física e a boa alimentação na infância para prevenir obesidade infantil, que pode se perpetuar na adolescência e na vida adulta.

O conhecimento empodera – conhecimento sobre a doença, os tratamentos, os efeitos colaterais. Antes de iniciar um tratamento de saúde mental, o paciente é alertado, ensinado sobre os possíveis efeitos colaterais que podem surgir. Se ele perceber qualquer coisa diferente do esperado, inclusive ganho de peso, é orientado a voltar ao médico.

Ou seja, é algo possível de prevenir. Se uma medicação não deu certo, ou se o médico avalia que o custo-benefício da medicação para aquela pessoa não está adequado, ele pode trocar, mudar a dose. Por isso, a pessoa tem que se manter muito próxima da equipe que trata dela, tanto de sua condição de saúde mental quanto da obesidade.

Muitas vezes a causa da obesidade é genética, por exemplo. Mas, podemos ajudar no controle da doença. Para isso, o paciente precisa conhecer as possibilidades dos medicamentos que ele precisará usar e, claro, deve ser tratado por profissionais especialistas.

SNSP - Como lidar com o estigma relacionado a transtornos mentais em associação com o estigma da obesidade?

DRA. ANDREA LEVY – por meio da educação das pessoas em relação à obesidade, fazendo com que elas entendam, acima de tudo, que a obesidade não é uma escolha, mas uma doença. O mundo atual propicia mais obesidade, porque a nossa vida se tornou mais sedentária e os alimentos são mais industrializados, mais cheios de açúcar e de gordura, do que eram no século passado.

Muitas pessoas acusam o indivíduo com obesidade agressivamente, dizem para ele assim: “vai se tratar, olha só o seu tamanho, olha como você está gordo”, e justificam essa fala dizendo que querem ajudar. Mesmo na melhor das intenções, falar dessa forma vai fazer com que a pessoa não queira buscar ajuda, porque ela pensa: “se já estou sendo tratada assim por um familiar ou amigo, imagine um profissional de saúde”. E, às vezes, o próprio profissional de saúde a trata dessa forma também. Infelizmente, isso acontece em todos os ambientes. 

Então, precisamos muito falar sobre a gordofobia e combater esse tipo de agressividade. A pessoa com obesidade não vai se tratar só porque alguém apontou o dedo para ela e disse que ela tem obesidade. Ela sabe que tem obesidade e o quanto ela sofre por isso. O que ela precisa é de pessoas que entendam, acolham, ofereçam ajuda, se ofereçam para buscar tratamento junto com ela, se for um amigo ou familiar, ou que saibam conduzir o tratamento, no caso de profissionais de saúde.

 

SNSP - Sabemos que muitos casos de gordofobia acontecem dentro do ambiente familiar e/ou com pessoas próximas, em frases disfarçadas de afeto, por exemplo: “você fica mais bonita (o) magra (o)”, “você tem um rosto tão lindo, por que não emagrece?”. Como esse tipo de frase afeta a saúde mental das pessoas com obesidade?

DRA. ANDREA LEVY – mesmo disfarçadas de afeto, essas frases intimidam. A pergunta “você tem um rosto tão lindo, por que não emagrece?” já pressupõe que a pessoa escolheu não emagrecer; que o rosto dela é lindo, foi validado, mas que o corpo dela é feio – sendo que a beleza é subjetiva, cada um tem a sua. Esse tipo de frase, que pessoas com obesidade escutam corriqueiramente, não faz com que elas se sintam acolhidas de forma alguma. Ao contrário, faz com que se sintam ainda mais discriminadas e intimidadas para buscar tratamento, porque imaginam que vão ser tratadas dessa forma pelo profissional.

É melhor trocar esse tipo de comentário, que não agrega nada, por: “estou vendo que você está tentando perder peso, gostaria de ajuda para isso?”; “vamos juntos procurar um profissional de saúde que entenda disso, se quiser, eu vou com você”; “vamos tentar mudar a alimentação aqui de casa”. Isso sim é ajuda verdadeira, isso é apoio, isso é fazer a pessoa se sentir acolhida. Julgar, apontar o dedo, estigmatizar, só faz com que a pessoa desanime ainda mais de buscar qualquer tipo de ajuda.

SNSP - Questões sobre estigma da obesidade e saúde mental são constantemente vistas como “mimimi” ou vitimismo. Como explicar para os haters que são temas que precisam ser respeitados? Qual o caminho para essa conscientização coletiva?

DRA. ANDREA LEVY - eu sempre acho que o caminho é a educação, ou seja, as pessoas entenderem a obesidade como doença. Colocar-se no lugar do outro é um exercício fácil, mas que nem todo mundo faz. Imagine que as pessoas com obesidade com as quais você convive estão sempre atentas quando vocês vão passear, vão a um barzinho, a um cinema, para saber se elas cabem na cadeira desses espaços. São comuns os casos de pessoas que quebram cadeiras de plástico, não cabem no assento do cinema, não passam na catraca do ônibus, não conseguem frequentar locais cujo acesso se dá somente por escadas, não conseguem comprar roupa adequada para o tamanho delas. Tudo isso exclui a pessoa com obesidade.

Existem, também, os que defendem a diversidade de corpos, que cada um tem que ser como quer, que o corpo é livre. Claro que o corpo é livre e a pessoa pode se gostar do jeito que é, mas a obesidade é doença. Quando ouve esse tipo de discurso, a pessoa que quer se tratar se sente intimidada e na obrigação de levantar uma bandeira de autoaceitação. A pessoa tem que ter a possibilidade, a liberdade e, principalmente, o acesso aos tratamentos. Então, quando se afirma que a pessoa com obesidade tem que se assumir dessa forma, ser assim mesmo, isso exclui a possibilidade de ela querer se tratar. O que é mais um tipo de preconceito.

A obesidade é uma doença que abrange também os mecanismos da saúde mental e, por isso, os aspectos emocionais e psiquiátricos devem ser considerados no tratamento para que ele tenha resultados duradouros e eficazes.

BR22OB00129- Nov./2022

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